quinta-feira, março 15, 2007

ANTES DE VIVER O DIA

O armário de Vicente não era um armário comum. Era feito inteiro de gavetas pequenas.Várias gavetas etiquetadas e enfileiradas da base ao topo. Ele mesmo, com sua habilidade herdada do pai carpinteiro, o construiu assim que mudou para aquela casa enorme. Era um armário monumental, que ocupava, inteiras, as três paredes do melhor quarto daquilo que ele chamava de lar.
Vicente era um homem como outro qualquer antes de entrar naquele quarto todos os dias antes de sair. Tomava banho de manhã, se barbeava de três em três dias, usava a mesma marca de desodorante desde sempre, penteava cuidadosamente os cabelos e vestia o terno cinza que estava esticado em cima da cama. Assim que borrifava a colônia barata no pescoço, estava pronto.
Entrava silenciosamente no quarto das gavetas, abria todas as portas e procurava pela etiqueta certa. Segunda-feira era dia de ir para o trabalho, então abriu a gaveta chamada “concordato”. Toda terça, era feira e faxina. Não precisava do terno, mas tinha que abrir a gaveta “disposição”. Então, na quarta-feira ele se encontrava com Fátima, que não sabia do seu desejo por suas pernas e colo farto. Usou aquela gaveta “amigável” antes de vê-la. Talvez na semana seguinte tivesse coragem de abrir a “conquistador”.
Na quinta-feira encontrava com os amigos num bar. Essa era fácil. Sempre a mesma gaveta toda semana: “acolhido”. Quando chegava a sexta as escolhas variavam entre “oprimido”, “desiludido” ou “abatido”. Mas essa semana resolveu tirar a poeira da “esperança” e finalmente abri-la.
No sábado foi visitar a mãe. Nesses dias ele se delongava mais em frente às etiquetas. Nunca sabia qual a certa, a melhor, a mais adequada. O que sua mãe ia querer ver nele hoje? Por mais que variasse, nunca acertava. Optou por “realizado” e saiu correndo antes que se atrasasse de novo. Disso ela não iria gostar, definitivamente.
Então o domingo havia chegado. Podia ficar em casa sem depender delas, as milhares de máscaras inquilinas de suas gavetas etiquetadas. Máscaras essas que o pai tinha confeccionado, antes que Vicente se mudasse para viver a vida só.

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