quinta-feira, junho 28, 2007

A FOTOGRAFIA ESCRITA REVELADA EM MARGUERITE DURAS

UMA FOTO, UMA MÃE - parte 2 do trabalho final da disciplina "A Literatura e a Vida" da professora Lúcia Castello Branco da Faculdade de Letras da UFMG

“Aquela que comprou o chapéu cor-de-rosa de abas caídas e larga fita preta é ela, a mulher de uma certa fotografia, é minha mãe. Reconheço-a melhor ali do que em fotos mais recentes. Trata-se do pátio de uma casa no Pequeno Lago de Hanói. Estamos juntos, ela e nós, seus filhos. Tenho quatro anos. Minha mãe está no centro da fotografia. Lembro-me do seu porte desgracioso, dos lábios que não sorriam, do modo como esperava que tirassem logo a foto. Pelos traços cansados, uma certa desordem de postura, a sonolência do olhar, sei que fazia calor, que ela estava extenuada, que se aborrecia. Mas é no modo como estamos vestidos, nós, seus filhos, como infelizes, que reencontro um certo estado de espírito que às vezes dominava minha mãe e do qual, já naquele tempo, naquela idade que tínhamos na foto, sabíamos perceber os sinais precursores, aquela atitude, exatamente, que assumia, de repente, de não querer mais nos dar banho, nos vestir, nem mesmo nos alimentar. Esse grande desânimo de viver minha mãe tinha-os todos os dias.” [i]

Para Duras, sua mãe é a mulher de uma certa fotografia. Aqui se denota a importância da imagem nessa relação, já que ela assim a define. No momento em que escreve o texto toda a figura materna se materializa numa determinada imagem estática, se maternaliza. Não é uma imagem recente, e sim, uma de sua infância que a determina, em que a mãe lhe é reconhecível. Nos traços dela, Duras pode redefinir o sentimento que sua mãe transferia aos filhos. Pelo seu olhar nessa certa fotografia a filha sabe que a mãe estava cansada, “extenuada” e aborrecida. É também pelo seu olhar que ela sabe ainda que fazia calor naquele dia. Não há limites para a interpretação de uma imagem.
Porém, é no modo como seus filhos estão retratados que Duras sabe melhor como definir o “estado de espírito” da mãe. É na sua própria imagem e na dos irmãos que ela reencontra a imagem materna, e mais do que isso, seu cansaço extremo da vida, que a afasta dos filhos. Das vestes ela deduz, e ao mesmo tempo relembra, a infelicidade dos filhos por causa dessa mãe. Ela não descreve essas vestes de infelizes, mas se são elas que definem a infelicidade das crianças, é impossível não fazer suposições, criando e construindo essa imagem dessa foto. Revelando novas fotos. Como são essas roupas? São sujas, carcomidas? São rasgadas, faltando pedaços? Tem a aparência de que não são trocadas há dias? Que cores tem? Qual a cor do abandono?
Assim, fazendo essa análise, a autora vai exercitando a liberdade da consciência através da ausência. Em Sartre há exemplificação de como a imagem se constitui através dela. “a nadificação do mundo é a condição essencial e a estrutura primeira da aparição do imaginário”[ii]. O que “foi” se opõe ao que “olhamos ser” em certa fotografia, que demonstra toda a sua característica projetiva.
Blanchot tem duas concepções acerca da imagem: numa o real é velado e na outra o real é revelado. A primeira delas faz da imagem uma representação de um determinado objeto, como se fosse seu duplo. A imagem teria a função de nos preservar e proteger, recobrindo o real. “Ela limpa-o, torna-o conveniente, amável e puro, e permite-nos crer, no âmago de um sonho feliz que a arte autoriza com demasiada freqüência, que à margem do real e imediatamente atrás dele encontramos, como uma pura felicidade e soberba satisfação, a eternidade transparente do irreal.”[iii] Esta primeira concepção Duras escreve numa outra bela passagem sobre sua infância.

"De tempos em tempos minha mãe decreta: amanhã vamos ao fotógrafo. Queixa-se do preço, mas não dispensa as fotos de família. Essas fotografias, nós as olhamos, não nos olhamos, mas olhamos as fotografias, cada um separadamente, sem uma palavra de comentário, mas as olhamos, nos vemos. Vemos os outros membros da família um a um ou reunidos. Nós nos revemos quando éramos muito pequenos nas antigas fotos, e nos olhamos nas fotografias recentes. A separação aumentou entre nós. Depois de olhadas, as fotografias são guardadas no armário com a roupa de cama. Minha mãe manda-nos fotografar para poder nos ver, ver se crescemos normalmente. Examina cada um de nós demoradamente como as outras mães a outros filhos. Ela compara as fotografias, fala do crescimento de cada um de nós. Ninguém responde."[iv]

A mãe que não consegue olhar os filhos, os filhos que não se olham e que não respondem a essa mãe conseguem apaziguamento na fotografia porque ela os protege do real. Um real que a mãe não suporta. A imagem dos filhos é dela, ela olha como quer e consegue os mostrar ao mundo. O fato de guardar as fotos entre lençóis aumenta o sentido de intimidade e denota até mesmo uma certa sensualidade na relação com essas fotografias.
Outra passagem do livro reafirma a relação da mãe/filhos feita através das fotos, e somente através delas.


“Jamais tirava fotografia de lugares, de paisagens, só dos filhos, e quase sempre nos agrupava para que a fotografia ficasse mais barata. As poucas fotografias tiradas por amadores foram feitas por amigos de minha mãe, novos colegas recém-chegados à colônia que fotografavam a paisagem equatorial, coqueiros e cules, para enviar a suas famílias.” [v]

A segunda concepção da imagem que Blanchot faz é o “viver um evento em imagem”. “O que acontece apodera-se de nós, como nos empolgaria a imagem, ou seja, nos despoja, dele e de nós, mantém-nos de fora, faz desse exterior uma presença em que o “Eu”não “se” reconhece”.[vi] Entende-se a passagem como se a imagem aflorasse uma parte sua, colocasse para fora de você algo seu que fosse desconhecido. É o real representado que nos atrai, e fascina. Está aí revelado o mistério na atitude da mãe de Duras em insistir tanto em mostrar fotos dos filhos à família. A mãe era atraída para agir desta forma, fascinada com o que via naquelas imagens: uma família, algo que não existia na realidade, ela faz existir em imagem.

“Misteriosamente minha mãe mostra as fotografias dos filhos à sua família durante as férias. Não queremos entrar para essa família. Meus irmãos jamais a conheceram. Eu, a menor, a princípio ela me levava. E depois deixou de me levar porque minhas tias, por causa de minha conduta escandalosa, não queriam mais que suas filhas me vissem. Então só resta a minha mãe mostrar as fotografias, e então as mostra, logicamente, razoavelmente, mostra às primas irmãs os filhos que tem. Tem de fazê-lo, então o faz, suas primas são o que resta da família, e assim ela lhes mostra as fotografias da família. Será que se pode perceber algo sobre essa mulher por esse modo de agir? Por meio dessa sua disposição para ir sempre até o fim de tudo, sem jamais imaginar que poderia abandonar, pôr de lado as primas, a dor, as tarefas penosas? Acho que sim. É nessa coragem especial, absurda, que encontro a graça profunda.”[vii]

Interessante perceber que a fascinação diante das fotografias tem para Roland Barthes algo de “turvo”. Não é a nostalgia, é esse “turvo” que o encanta. Suscita uma espécie de “sonho obtuso” que divide seu corpo em várias unidades: dentes, cabelos, nariz e meias compridas que não os pertence e ao mesmo tempo não são de mais ninguém. Assim, ao ver sua própria imagem numa fotografia ocorre que, o que o prende é exatamente aquilo que ele não pode dizer nada. Em “Roland Barthes por Roland Barthes” quando o autor começa o livro com várias imagens ele diz não se reconhecer nas fotografias. As chama de indiscretas (pois é o corpo de baixo que nela se dá a ler) e muito discreta (“pois não é de mim que ela fala”). A conclusão de Barthes é que estamos todos condenados ao imaginário, já que somos os únicos que nunca podemos nos ver.

Onde está seu corpo de verdade? Você é o único que só pode se ver em imagem, você nunca vê seus olhos, a não ser abobalhados pelo olhar que pousam sobre o espelho ou sobre a objetiva (...): mesmo e sobretudo quanto a seu corpo, você está condenado ao imaginário” [viii]




[i] DURAS,M. (1984/85) O Amante – Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira. p.18 e 19
[ii] SARTRE (1940 p.359).
[iii] BLANCHOT, Maurice. O Espaço Literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. p. 256
[iv] DURAS, M. (1984/85) O Amante – Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira p.113
[v] Idem - p.104
[vi] BLANCHOT, Maurice. O Espaço Literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. p.144
[vii] DURAS, M. (1984/85) O Amante – Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira p.104/105
[viii] BARTHES,R. 1975 – São Paulo: Cultrix – p.42

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