sexta-feira, agosto 04, 2006

A Viagem de Felício



Felício não tinha brinquedos, talvez por isso sua imaginação fosse maior do que a dos meninos da vizinhança. Brincava com tocos de madeira, bichos no quintal, galhos de árvore ou folhas que caíam. Não tinha irmãos e seus pais estavam sempre muito ocupados com a lida diária para ganhar o pão.
Ele se sentia livre, mas não sozinho. Ele tinha a companhia das palavras. Elas chegavam a ele, grandes como esculturas coloridas, toda vez que algo importante fosse acontecer. Resolveu colecioná-las numa caixa de papelão em seu quarto. As carregava com cuidado, uma a uma, depois de observá-las e tocá-las.
A primeira que lhe chegou foi FOME. Era uma palavra pequena, mas muito forte. Sabia que ela iria acompanhá-lo por bastante tempo.
Depois elas foram chegando aos montes, e ele foi juntando suas companheiras com carinho. Às vezes se divertia simplesmente em as unir, ou empilhar, mas principalmente sentir sua vibração. Gostava muito de COLO e CAFUNÉ.
Uma vez, porém, lhe chegou uma palavra estranha e sombria: MORTE. Guardou depressa, pois sentiu que ninguém gostava de encará-la, e por coincidência sua tia não apareceu mais depois deste dia.
O tempo foi passando, e Felício foi enchendo seu quarto de palavras. Uma lhe chamou a atenção, certo dia pois ela brilhava no escuro: MUDANÇA. Junto dela veio outra - era raro isso acontecer – CRESCIMENTO. Isso foi exatamente uma semana antes de sua família o mandar estudar numa cidade muito distante da sua.
Felício realmente cresceu neste outro lugar, se formou em Letras, como seus pais já previam. Ele era bom com as palavras, sabia como as atrair para seu mundo e como as usar. Cada qual no seu momento.
Professor e escritor, Felício ainda sentia falta da enorme coleção de palavras que deixara em seu quarto, mesmo depois de ter tantos livros na sua estante. Resolveu voltar à antiga casa para buscar as suas antigas palavras. As que mais queria rever eram ACONCHEGO e SEGURANÇA.
Felício estranhou quando abriu a porta e não recebeu o abraço da mãe, nem o sorriso do pai. O tempo tinha passado, e disso nenhuma palavra o tinha avisado.
Entrou em seu quarto e nada encontrou. Sua imensa coleção tinha desaparecido. Percebeu que agora sim estava sozinho, e sim, as palavras já tinham cumprido sua missão.
Agora teria que ir buscá-las com o esforço de seu pensamento. Teria que inventar e descobrir a vida por ele mesmo.
Saiu da velha casa sentindo o pior medo que já tinha sentido. Não sabia se seria capaz de viver sem a proteção daquelas palavras. Foi andando cabisbaixo, abriu o portão e voltou seu último olhar para aquele seu empoeirado ninho de infância. Só neste instante percebeu que havia uma palavra escrita no alto da parede, quase perto do telhado, logo na entrada da casa, numa placa de bronze. Era essa: CORAGEM.

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