terça-feira, setembro 02, 2008

Da série: Partes Editadas

De onde ele vem?

* Reportagem originalmente escrita para a Revista Encontro. Para ler como foi publicada clique aqui

Como mágico que tira o coelho da cartola ou transforma um papelote simples e sem graça em ave colorida, algumas pessoas enchem nossos olhos e ouvidos com habilidades que parecem surgir do nada. Algo inexplicável, feito mágica, faz cair nosso queixo de estupefação: como será que se consegue tocar piano com tal perfeição? Como é possível interpretar personagens nos palcos com tanta fidelidade? Em poucas horas, e sem ensino algum, criar obras de arte impressionantes? Dedilhar um violão como se tivesse nascido com ele nos braços? E dançar balé de tal forma que parece que o corpo faz parte da música unindo técnica, força física e graciosidade?
Um misto de deslumbramento e incredulidade acompanha nossos olhos e pensamentos ao observar pessoas assim, cheias de dom. Como o ator e produtor teatral Ney Latorraca, que já encantou o país nos palcos montando grandes musicais, clássicos da dramaturgia mundial e O Mistério de Irma Vap, sucesso do teatro brasileiro, que deu a ele e a Marco Nanini o recorde mundial de apre­sen­tações de uma peça com o mesmo elenco, segundo o Guiness Book. Marcou época na TV trabalhando com os maiores diretores em minisséries de sucesso, além de inaugurar uma nova forma de se fazer humor televisivo com TV Pirata. Ele diz que já nasceu ator. “Acho que se somos bem direcionados e equilibrados desde criança, a gente sempre sabe o que quer. Para mim foi fácil saber isso, pois estava nesse meio desde sempre e aproveitei para transformar numa vocação”.
É verdade que os pais de Ney eram crooners de cassino, circulavam pelo meio artístico, assim, nada mais natural que o então menino de 6 anos de idade estreasse numa novela de rádio. No colégio, o adolescente chamava a atenção sempre. “Ao invés de entrar para o coral, montava um frevo e me apresentava. Era péssimo na escola, pois na verdade eu já não estava mais ali, minha alma já estava nos palcos, e via meus colegas como minha platéia”. Nem ele sabe de onde vem esse dom, mas arrisca dizendo que é resultado de fatores que caminham juntos: persistência, sorte, estar ao lado das pessoas certas, se unir a grandes diretores e construir bom currículo. “E o mais importante: cuido de mim e mantenho sempre a criança viva trabalhando a memória emotiva. Assim a criatividade surge sempre”.
Deixando à parte toda explicação religiosa e mística, que varia de crença em crença, atribuindo o dom às mãos divinas, como explicá-lo? Considerando que segundo especialistas, a aptidão ou talento é traço psicológico que somente algumas pessoas possuem; a capacidade muito acima da média da população em realizar uma atividade cognitiva ou não, a genética deveria esclarecer a questão. Correto? Em parte. Segundo o professor Sérgio Pena, médico geneticista, não há algo literalmente inato como o dom. “O que existe são combinações felizes e harmônicas de genes (ou o conjunto deles, que chamamos genótipo) e ambiente que, aliado a uma série de contingências, determinam elevada performance em determinada área”.
Isso não quer dizer então que o dom seja necessariamente hereditário, pois os genes não são transmitidos em bloco aos filhos. No processo de reprodução sexuada os genes são embaralhados para criar novas combinações. Está aí talvez a explicação para que irmãos (com mesmo pai e mãe) tenham talentos diferentes. “O genótipo excepcional é efêmero e o ambiente muda bastante de uma geração a outra. Hoje em dia a evolução humana não é mais biológica, e sim, principalmente cultural. Na medida em que a cultura se torna mais complexa e variada, novos nichos de excelência se abrem”, completa Sérgio Pena.
Yamandu Costa, compositor e instrumentista gaúcho já foi chamado de prodígio, gênio do violão (ele toca violão de 6, 7 e 8 cordas) e percussor das águas. Se alguém já o viu tocar entende o motivo: suas interpretações performáticas conseguem remodelar cada música que toca e revela profunda intimidade com o instrumento. Quando isso começou? Bem cedo. Aos 4 anos já participava de programas de rádio em Porto Alegre e chegou a gravar um disco. Estudou violão dos 7 aos 15 anos e neste período formou o grupo Os Fronteiriços com seu pai, primos e tios. Sim, Yamandu vem de uma família inteira de instrumentistas, diz que quase todas as gerações pregressas brincaram de ser músicos. Isso ajudou de sobremaneira a construir o músico que é hoje, mas não explica como, assim de pronto, ele era capaz de tocar todas as músicas que o pai lhe passava com apenas 9 anos. “Em três meses dei um salto de três anos. Foi uma coisa louca: eu tocava músicas muito difíceis do nada, sem professor! Mas eu era doido com o instrumento e ficava o dia todo em volta dele. Eram literalmente 24 horas de violão, dormia com ele, tinha um na cozinha e outro no banheiro”.
O violonista toca num ponto importante, que esclarece um pouco de onde vem motivação para ser tão bom. O pai era apaixonado por música, tinha tremendo orgulho daquilo. Além disso, sabia, desde muito pequeno, que tocar a emoção das pessoas através da música era recompensador. “É muito bom pro ego da gente, é uma gasolina para o meu estudo”. Hoje, Yamandu alcança platéias sem fronteiras. Acaba de chegar de uma turnê de 24 dias pela Coréia, Finlândia, Alemanha, Áustria e Itália. Pousou no Brasil por dois dias para voltar a voar para outra turnê de 15 dias no Canadá.
O professor sênior da Faculdade de Medicina da UFMG e colaborador do departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, Raimundo da Silva Lippi diz que o mistério que envolve o dom musical apenas começa a ser desvendado pela ciência. Cientistas finlandeses descobriram duas regiões do genoma humano onde se escondem os genes da música (cromossomo 4 contém cerca de 50 genes que serão estudados para confirmar se alguns estão associados com a aptidão e talento musical). Publicado no Journal of Medical Genetics, ele pode ser considerado o maior estudo sobre a habilidade musical na genética molecular do ser humano e os pesquisadores esperam encontrar no futuro mutações genéticas em um ou mais genes. “Todos os seres humanos possuem esses genes, mas é provável, no entanto, que as pequenas variações (mutações) sejam o segredo”, diz Lippi.
Outra pesquisa em andamento está sendo desenvolvida por Christian Gase, da Universidade de Jena (Alemanha) e Gottfried Schlaug, da Escola de Medicina de Harvard (Estados Unidos). Eles querem descobrir se o cérebro dos músicos é diferente dos demais desde o nascimento ou se as diferenças se desenvolvem em função do treinamento musical. Para isso estão estudando, desde 2003, 3 grupos de crianças americanas de 5 e 7 anos. Em outra pesquisa com adultos eles descobriram que a quantidade de massa cinzenta (determinante no grau de inteligência do indivíduo) de algumas regiões responsáveis pela audição, visão e controle motor é maior no músico bem treinado.
Treinamento é a obsessão do pianista Arnaldo Cohen, único aluno na história da universidade brasileira a graduar-se com grau máximo em piano e violino pela Escola de Música da UFRJ. Entre suas conquistas está o 1º Prêmio no Concurso Internacional Busoni na Itália e o fato de que é o primeiro brasileiro a assumir uma cátedra vitalícia na Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, onde mora há quatro anos. Antes disso viajou por 20 anos pela Europa como pianista. Em recente turnê pelas maiores capitais brasileiras, Cohen diz que quanto mais alguém se torna realmente bom em algo, mais tem noção de quanto pode melhorar. “Sou muito exigente comigo mesmo, terrível. Corro atrás de algo que sei que nunca vou alcançar: a perfeição, mas a cada vez que me apresento tenho que sentir que cheguei mais perto dela”. Para isso desenvolve um trabalho que ele chama de insano, sem sábados ou domingos, controlando a ansiedade de quem sabe que tem um encontro marcado com a inspiração, no horário marcado do concerto. É só uma chance para demonstrar tudo o que sabe.
Mesmo com tanto trabalho, Cohen avalia que aquele que não sabe reconhecer melodia, não tem memória musical, não entende a linguagem com facilidade, não tem predisposição física e nem transita dentro da atmosfera como algo natural, não será músico excepcional. Pode ser mediano, mas não genial. Arnaldo Cohen diz que levou algum tempo para decidir seguir carreira como pianista (largou a faculdade de engenharia no terceiro ano), mas conta que por coincidência foi exposto a este universo. O pai, dentista, tinha uma paciente que era professora do Conservatório de Música e o convenceu que era bom para os filhos terem educação cultural mais ampla. Aos 6 anos começou a aprender violino e a irmã, piano. Só foi parar no piano para reinstalar a paz familiar, já que o menino enfurecia a irmã tocando de ouvido as músicas que eram dela, no instrumento que era só dela. A professora resolveu o dilema ensinando a ele músicas diferentes e ele pôde enfim tocar piano. O começo de tudo nos mostra que mesmo quem teve que trabalhar muito para alcançar o sucesso, contou uma ajudinha da mãe natureza.
Daí a importância de se identificar o talento, que sempre se manifesta precocemente. A professora do departamento de psicologia da UFMG e coordenadora do Laboratório de Avaliação das Diferenças Individuais e membro da International Society for the Intelligence Research, Carmem Flores, afirma que é um mito acreditar que todos somos talentosos em algo. “Trata-se de uma forma de aliviar a angústia de saber que temos limites”. Segundo ela, a maioria da população, 68%, apresenta níveis médios em qualquer atividade, 16% tem um desempenho inferior, 11 a 13% um pouco acima da média e somente 2 a 5% pode apresentar algum talento excepcional. Diferentemente da superdotação, entretanto, o talentoso pode sempre aprimorar-se com o tempo.
Outros fatores importantes para que o dom seja despertado são a intuição e a oportunidade. O professor de filosofia do Uni-BH e enxadrista Ruillon Mont’Alverne destaca que o raciocínio e a lógica já foram muito estudados, mas é parte pequena da inteligência humana. “A maior é a intuição, uma zona desconhecida que não sabemos como aprendê-la, desenvolvê-la e nem dominá-la. Por isso é tão difícil explicar cientificamente de onde vem o dom”, afirma com o conhecimento de quem tem projeto no qual ensina xadrez em várias comunidades carentes de Belo Horizonte. Acompanha meninos e meninas sem muitas condições construírem crédito em si mesmos e desenvolverem a capacidade de pensar bem, a criatividade e a lógica. A oportunidade também pode ser mola propulsora de talento.
Um ex-plantador e comercializador de batatas que o diga. Leonardo Bueno, mineiro de Maria da Fé, deu devida atenção à antiga facilidade que tinha para o desenho há apenas quatro anos. Interessou-se pelo design quando namorava uma estudante de arquitetura. “Ele fazia os trabalhos de escola dela, que tirava as melhores notas”, afirma Helena Celis Carvalho, mãe do artista plástico. Dos trabalhos foi para a prática quando precisou mobiliar sua pousada: fez um banco, que logo vendeu. Gostou do feito, participou da Feira Nacional de Artesanato em Belo Horizonte. “Era estande pequeno, mas uma austríaca comprou produto e aí não parei mais.” Não teve escola, só dicas do vizinho marceneiro. Hoje suas peças, elaboradas com madeira do lixo de multinacionais instaladas em Itajubá, fazem sucesso em todas as capitais do país, na Europa, Nova Iorque e Dubai. Da batata ele diz ter aproveitado a experiência em comercializar o que cria para ter sucesso financeiro. “Eu era uma carreta em marcha-lenta, um desperdício. Sentia que tinha potência, mas não conseguia acelerar. Não estava no caminho certo e isso me incomodava. Agora ninguém me segura”, brinca.
Foi o dom de Leonardo Bueno o responsável pelo seu sucesso ou sua inteligência? Alguns autores usam dom e inteligência como sinônimos, uma construção cultural. De acordo com o psiquiatra e professor de psiquiatria da faculdade de medicina da UFMG, José Lorenzato de Mendonça a inteligência é um conjunto de milhões de habilidades, e para isso o cérebro faz milhões de sinapses: “nós temos mais ou menos 50 bilhões de neurônios e cada um faz cerca de duas mil sinapses. É como se a gente tivesse bilhões de computadores trabalhando em tamanho molecular e todos trabalham de maneira diferente e ao mesmo tempo”, afirma Lorenzato. Isso por si só já é misterioso! O psiquiatra completa que quanto mais se desenvolve as habilidades no meio em que vive, mais inteligente se é. Não adianta ter um QI elevadíssimo, mas não saber usá-lo, não se socializar, por exemplo.
Ela não imaginava que sua estrela brilharia tanto. Talvez porque quando começou no balé, por influência da mãe, a dança não era tão profissionalizada. Logo se encantou pelo balé, mas achava que ser bailarina profissional era sonho distante. Ana Botafogo, primeira-bailarina do Teatro Municipal do Rio de Janeiro desde 1981 diz que sempre foi uma criança musical, tinha facilidade para fazer as seqüências das coreografias, mas não era prodígio. Quando finalmente entrou para a companhia de dança francesa Ballet de Marseille, aos 17 anos, vivenciou uma grande revolução. “Eu ia passar 3 meses na Europa estudando francês e resolvi fazer a audição só pela experiência. Não pensava que ia ser a única contratada e que minha vida mudaria a partir daí”, conta.
Ana Botafogo se entregou à dança, participando de festivais na Suíça, Itália, Cuba, Espanha, Polônia e Inglaterra, além de ser convidada para se apresentar junto das maiores companhias de balé do mundo. Ela sabia que as sapatilhas tinham que ser prioridade na sua vida, pois os desafios estariam lado a lado dos calorosos aplausos do público. “Eu acho que é preciso ter sorte, estar no lugar certo no momento certo, saber aproveitar isso é muito importante”. A bailarina não somente recebeu esse dom, ela soube se doar a ele.
Doutora em teoria Psicanalística pela UFRJ, membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise, Ana Lúcia Lutterbach Holck acha que o dom é exatamente isso: algo que a pessoa dá e não o que ela recebe. “Não é possível determinar de forma decisiva as causas que levam alguém a se tornar muito bom em alguma coisa, no entanto, isso não acontece se o sujeito não for causado pelo desejo. Essa é a mola que coloca todo o resto em movimento”. E o que é o desejo? Para a psicanálise é o milagre que se realiza a cada vez que alguém transforma algo comum da realidade em algo desejável. Que o balé, o teatro, as artes plásticas, a música e tantos outros sejam maravilhosos muitos concordam, mas são poucos que irão transformá-los em objeto de desejo de tal maneira que possam dedicar toda sua vida a ele. As pessoas têm mil possibilidades de conexão interna e com o mundo externo, e por isso cada um terá sua maneira peculiar de estar no mundo. O que fez com que Ney Latorraca, Ana Botafogo, Leonardo Bueno, Arnaldo Cohen, Yamandu Costa e tantos outros descobrirem e aproveitarem bem seu dom é um mistério, mas não é ele parte do fascínio?