quarta-feira, dezembro 17, 2008

Quase tudo que levou a água

Ela mora numa cidade com um nome que agora não tinha graça nenhuma, Ilhota. Manoela tem cinco anos e sempre quis morar em uma ilha deserta, sempre amou o mar mesmo sem conhecer de perto. Via pela televisão, que boiou com o resto de suas bonecas. Parece que a terra tinha virado mar e o nome da cidade se transformou numa piada de mau gosto. Perdeu a vontade. O céu continuava a cair, e com ele seu armário, a estante do irmão, tudo o que a mãe levou tanto tempo para conseguir comprar para sua cozinha. As roupas estavam molhadas, assim como os olhos de quase toda família. Os que sobraram, pelo menos: foram cinco que se foram tão rapidamente quanto a força da água.
Os vizinhos nem batiam mais na porta para chamá-la para uma brincadeira sem pressa.Ela esperava e tapava os ouvidos: não suportava ouvir o barulho da água caindo. Enquanto isso ela tentava entender porque a água não parava de desabar, e se ela descia pelas ruas, porque não ia para bem longe?
– Se o mundo tem tanto espaço caberia muito mais água do que esse tanto aqui, não é mamãe?
– É filha...
– Porque a água não escorre?
A mãe não sabia e nem tinha forças para inventar alguma história que satisfizesse a curiosidade de Manoela.
Com o tempo a menina foi descobrindo que assim como a água, chegavam todo o tipo de coisas na casa, que ela apelidou de caixa d’água. A mãe expliava que eram doações de quem tinha muito e que não tinha nada molhado. Fome ela não passaria, e sua curiosidade infantil buscava em seus pensamentos de onde vinha cada item. O avô, Daniel, se encarregou de separar tudo, quase nada dispensava. Ele sabia que não tinha sobrado coisa alguma que fosse aproveitável depois daquela fatalidade.
– Olha, minha filha, veio no meio das roupas um casaco muito chique, você quer? – perguntou o avô sem despertar nenhum interesse nela.
– É? O que vou fazer aqui com uma coisa tão ‘fina’ dessas?
A neta, ao contrário da mãe, levantou os olhos. Era um casaco preto, maior que o mirrado corpo dela, muito grosso, muito fofo. Parecia um urso preto de pelúcia, sem o enchimento. Ela gostou de tocar nele; se sentia abraçada, confortada por aquele pêlo tão macio que enfeitava a gola e as mangas. Manuela passou a dormir com ele. Brincar com ele. Chorar com ele. Às vezes fingia uma tenda e se refugiava lá em baixo. A mãe nem sentia sua falta, a menina achava que ela tinha pegado alguma doença dentro da água, mas a mãe não contava que a doença tinha o nome de tristeza.
Os dias foram passando vagarosamente. Quando Manoela resolveu se vestir naquela manhã cinza, se sentia mais sozinha do que o habitual. Pôs o casaco, percorreu os bolsos. A mão direita esbarrou num bloco duro, parecia um cubo. Quando viu o que era, correu para entregar ao avô.
– Vovô, esse casaco tinha os bolsos cheios de notas dessas aqui. Resolvi dar pra você de presente.
O avô abismado só fazia contar, contar, contar. Era muito dinheiro, quem mandou o casaco esqueceu suas economias dentro dele. Se ele não tinha perdido as contas eram R$ 20 mil. “Quem se esquece de tanto dinheiro assim?”, pensou com seus botões.
– Obrigado, Manu, mas essas notas não são nossas. Temos que devolver para a dona do casaco.
– Mas ela deu o casaco pra gente, não deu?
– Sim, mas o que tem aqui é muita coisa, por isso desconfio que quem enviou o casaco não queria nos dar tanto assim. Esse dinheiro seria suficiente para reconstruir toda nossa casa! Pensa bem, o que será que o dono queria ou preciava fazer com ele?
A menina fitou o avô, pensativa. Ele continuou
– Não saberemos, mas com certeza algo grande e importante.
Manoela não discutiu com o avô, já tinha aprendido que o que não é dela, não é e pronto. Ficou satisfeita em saber que não perderia o casaco. Daniel tinha a vida desconstruída, mas não reergueria às custas do sonho de ninguém.

sexta-feira, dezembro 12, 2008

Como responder?

"Mamãe, por que que o céu não cai?"