sexta-feira, agosto 25, 2006

ELAS VÃO

Mariana foi a primeira amiga que ela se lembra de ter tido um dia. Era criança ainda, mas aquilo já tinha um tamanho e tanto dentro dela. Vanessa ainda se lembra da enorme piscina, que era só delas e do quarto muito escuro que ela gostava tanto. Na sua casa não podia apagar a luz porque a irmã menor tinha medo do escuro de noite. Então, Vanessa dormia mais, do lado da melhor amiga, depois de brincar com suas bonecas loiras e italianas. Não ficou muito mais do que isso na memória, além do cheiro dos seus batons e perfumes importados e a imagem dos seus olhos muito azuis, que acompanhavam uma risada gostosa. Mariana ria muito, e assim, Vanessa seguiu muito tempo grudada nela, gargalhando à toa e inventando letras de músicas em inglês. De repente, Mariana resolveu ter outra melhor amiga, e assim Vanessa seguiu em frente sem saber o motivo e sem se lamentar.

Bete foi a segunda. Elas moravam tão pertinho que viviam uma na casa da outra. Cantavam, jogavam bola e escolhiam dramas para contar. Eram os primeiros sentimentos, as primeiras paixões, as primeiras decepções e o primeiro beijo. Foram nove dias de diferença. Vanessa ouviu o relato da amiga com os olhos esbugalhados e a vontade transbordando. Elas se apaixonaram pelo mesmo garoto, que morava em frente. Ou seria pelos dois irmãos? Ainda não sabiam direito. Todo final de semana, elas ficavam esperando os meninos acordarem e as chamarem para brincadeiras inocentes. Não se importavam em brincar com eles, enquanto desejavam que crescessem logo. Foram alguns anos de espera até que eles largaram a bola e o carrinho para verem estrelas. Bete resolveu beijar o garoto no dia seguinte em que Vanessa havia lhe contado que ele a beijara dentro do carro. A amizade continuou, mas nunca foi a mesma. Vanessa superou o fato, namorando o irmão mais novo - e mais bonito - do primeiro garoto beijado.

Então surgiu Angélica. Ela era tudo que Vanessa queria ser. Linda, olhos verdes, corpo de mulher numa menina loira, popular na escola e com muito mais histórias do que ela para contar. Por isso, Vanessa a detestava com todas suas forças para poder amá-la. Tinha chegado de outro país, contando que tinha um noivo lá. E Vanessa viveu através dela uma paixão adolescente por um noivo em outro continente. Até que Angélica foi rever o noivo no estrangeiro, e quando voltou tinha colocado um ponto final no noivado juvenil. Nunca mais procurou Vanessa. Trouxe um batom muito vermelho de presente, que ela guarda sem usar até hoje.

A última foi a que mais relutou em desaparecer. Taís era largada e despachada. Ia pra escola com pasta de dente nas espinhas do rosto e usava roupas e penteados incomuns. Foram unha e carne por muitos anos. Divertiram-se muito juntas. Usavam roupas parecidas, trocavam sapatos e muitas confidências. Vanessa era a certinha e Taís a desestruturada, se completavam e se invejavam. Foi ela quem apresentou à Vanessa a sua primeira paixão não correspondida, por quem curiosamente, Taís resolveu se interessar. Foi aí que Vanessa percebeu que ter uma melhor amiga não era uma idéia realmente tão maravilhosa. Teve que aturar ver os dois juntos por um tempo. Anos depois, Vanessa roubaria da mesa de um bar, onde Taís estava, o seu primeiro amor. Um dia depois de Taís tê-lo beijado. Desta vez, Vanessa seguiu o amor e não teve mais uma melhor amiga, por mais que quisesse.

sexta-feira, agosto 11, 2006

DEIXO IR

Cada vez que existo – sinto isto –
Um êxito doce e fugaz –
Meus dias são a espera alternada
– passional e plácida –
De um cisto de completude – afinal

Cada vez que desisto – tenho isto –
Um alívio sereno e gentil –
Alcanço assim um mundo
Que não me quer – simplesmente –
Por me deixar livre levar.

sexta-feira, agosto 04, 2006

A Viagem de Felício



Felício não tinha brinquedos, talvez por isso sua imaginação fosse maior do que a dos meninos da vizinhança. Brincava com tocos de madeira, bichos no quintal, galhos de árvore ou folhas que caíam. Não tinha irmãos e seus pais estavam sempre muito ocupados com a lida diária para ganhar o pão.
Ele se sentia livre, mas não sozinho. Ele tinha a companhia das palavras. Elas chegavam a ele, grandes como esculturas coloridas, toda vez que algo importante fosse acontecer. Resolveu colecioná-las numa caixa de papelão em seu quarto. As carregava com cuidado, uma a uma, depois de observá-las e tocá-las.
A primeira que lhe chegou foi FOME. Era uma palavra pequena, mas muito forte. Sabia que ela iria acompanhá-lo por bastante tempo.
Depois elas foram chegando aos montes, e ele foi juntando suas companheiras com carinho. Às vezes se divertia simplesmente em as unir, ou empilhar, mas principalmente sentir sua vibração. Gostava muito de COLO e CAFUNÉ.
Uma vez, porém, lhe chegou uma palavra estranha e sombria: MORTE. Guardou depressa, pois sentiu que ninguém gostava de encará-la, e por coincidência sua tia não apareceu mais depois deste dia.
O tempo foi passando, e Felício foi enchendo seu quarto de palavras. Uma lhe chamou a atenção, certo dia pois ela brilhava no escuro: MUDANÇA. Junto dela veio outra - era raro isso acontecer – CRESCIMENTO. Isso foi exatamente uma semana antes de sua família o mandar estudar numa cidade muito distante da sua.
Felício realmente cresceu neste outro lugar, se formou em Letras, como seus pais já previam. Ele era bom com as palavras, sabia como as atrair para seu mundo e como as usar. Cada qual no seu momento.
Professor e escritor, Felício ainda sentia falta da enorme coleção de palavras que deixara em seu quarto, mesmo depois de ter tantos livros na sua estante. Resolveu voltar à antiga casa para buscar as suas antigas palavras. As que mais queria rever eram ACONCHEGO e SEGURANÇA.
Felício estranhou quando abriu a porta e não recebeu o abraço da mãe, nem o sorriso do pai. O tempo tinha passado, e disso nenhuma palavra o tinha avisado.
Entrou em seu quarto e nada encontrou. Sua imensa coleção tinha desaparecido. Percebeu que agora sim estava sozinho, e sim, as palavras já tinham cumprido sua missão.
Agora teria que ir buscá-las com o esforço de seu pensamento. Teria que inventar e descobrir a vida por ele mesmo.
Saiu da velha casa sentindo o pior medo que já tinha sentido. Não sabia se seria capaz de viver sem a proteção daquelas palavras. Foi andando cabisbaixo, abriu o portão e voltou seu último olhar para aquele seu empoeirado ninho de infância. Só neste instante percebeu que havia uma palavra escrita no alto da parede, quase perto do telhado, logo na entrada da casa, numa placa de bronze. Era essa: CORAGEM.