sexta-feira, junho 29, 2007

A FOTOGRAFIA ESCRITA REVELADA EM MARGUERITE DURAS

A IMAGEM DA MORTE - parte 3 - final - trabalho de conclusão do curso do Pós-Lit "A Literatura e a Vida" da professora Lúcia Castello Branco da Faculdade de Letras da UFMG

Outra passagem de Duras se relaciona perfeitamente a “Imagem, o Despojo” de Blanchot, quando ele diz que a estranheza do cadáver é também a estranheza da imagem. A função de suspensão do lugar feita pela morte e sua relação entre aqui e parte nenhuma se assemelham com a função da fotografia. É como se algo que “está aí diante de nós, que não é bem o vivo em pessoa, nem uma realidade qualquer, nem mesmo o que era em vida, nem um outro, nem outra coisa”.


“Quando ela envelheceu, e os cabelos ficaram brancos, foi ao fotógrafo, sozinha, fez-se fotografar com o belo vestido vermelho-escuro e suas jóias, o cordão e o broche de ouro e jade, um pequeno pedaço de jade incrustado em ouro. Na fotografia ela está bem penteada, sem uma ruga, uma verdadeira pintura. Os nativos abastados também iam ao fotógrafo, uma vez na vida, quando sentiam a proximidade da morte. As fotografias eram grandes, todas com o mesmo formato, com belas molduras douradas, e eram colocadas perto do altar dos ancestrais. Todas as pessoas fotografadas, eu vi muitas, tinham quase a mesma aparência, parecia a mesma foto, uma semelhança alucinante. Não só porque a velhice é parecida, mas também porque os retratos eram retocados, sempre, de modo que as características do rosto, as que restavam, eram atenuadas. Os rostos eram preparados da mesma forma para enfrentar a eternidade, tinham seus traços realçados, uniformemente rejuvenescidos. Era como queriam. Essa semelhança – essa discrição – devia envolver a lembrança de sua passagem pela família, testemunhar ao mesmo tempo a singularidade dessa passagem e sua efetividade. Quanto mais os rostos se parecessem, mais se patentearia o fato de pertencerem à família. Além disso, todos os homens usavam o mesmo turbante, as mulheres o mesmo coque, os mesmos cabelos puxados para trás, os homens e as mulheres as mesmas túnicas de colarinho reto. Tinham todos a mesma aparência que eu reconheceria ainda em todos. A expressão de minha mãe na fotografia com o vestido vermelho, a expressão deles, lá estava, nobre, diriam alguns, discreta, diriam outros” (p.105,106)

O defunto começa a assemelhar-se a si mesmo. Processo descrito por Duras que inicia-se mesmo antes da morte, através da imagem. Nessa passagem ela une a estranheza da imagem e a do cadáver. Quando pressentiam a morte, faziam a foto. Pois, “o cadáver é o reflexo tornando-se senhor da vida refletida, absorvendo-a, identificando-se substancialmente com ela, ao fazê-la passar do seu valor de uso e de verdade para algo incrível – incomum e neutro”[i]. Assim, a imagem pode estar ligada à “estranheza elementar” citada por Blanchot e ao peso informal de ser presente na ausência, por não assemelhar-se a nada.



BREVE CONCLUSÃO

Várias das afirmações e conceitos que Silvina Rodrigues Lopes faz sobre cartas no texto “Na Margem do Desaparecimento” poderiam ser reescritas para a fotografia. “Há cartas para tudo”, ela diz. Reafirmo, para concluir este trabalho, de outra forma: “Há fotos para tudo”.
A natureza íntima da fotografia e o que escreve em nosso imaginário são alguns dos motivos do largo interesse por ela durante os séculos. Duras percebe isso: que a vida pode ser escrita em imagens, assim como em leitura. Concebeu uma vida totalmente literária, “assim como Franz Kafka (bem como Fernando Pessoa) (...) uma vida totalmente impessoal, uma vida escrita, na qual está fora da ordem do pensamento, e da crise que ele desencadeia (...)”[ii].
Duras reconhece sua fragilidade, reconhece que sua vida não pode ser contada, não pode ser biografada, fazendo assim a passagem do “eu”ao “ele”, “ao neutro, passagem para o espaço da verdade, da ficção, aí onde a verdade se dá justamente como algo que não se pode captar de outra maneira” como sugere Silvina R. Lopes que acontece também com Kafka através de suas correspondências, sugiro que acontece em Duras pela escrita através daquilo que faz a fotografia.

[i] BLANCHOT, Maurice. O Espaço Literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.p. 260
[ii] LOPES, Silvina Rodrigues. Na Margem do Desaparecimento p. 151,152 In: Literatura, Defesa do Atrito – Lisboa: Vendaval, 2003.

M. Duras (imagem retirada do site Film Reference)

quinta-feira, junho 28, 2007

A FOTOGRAFIA ESCRITA REVELADA EM MARGUERITE DURAS

UMA FOTO, UMA MÃE - parte 2 do trabalho final da disciplina "A Literatura e a Vida" da professora Lúcia Castello Branco da Faculdade de Letras da UFMG

“Aquela que comprou o chapéu cor-de-rosa de abas caídas e larga fita preta é ela, a mulher de uma certa fotografia, é minha mãe. Reconheço-a melhor ali do que em fotos mais recentes. Trata-se do pátio de uma casa no Pequeno Lago de Hanói. Estamos juntos, ela e nós, seus filhos. Tenho quatro anos. Minha mãe está no centro da fotografia. Lembro-me do seu porte desgracioso, dos lábios que não sorriam, do modo como esperava que tirassem logo a foto. Pelos traços cansados, uma certa desordem de postura, a sonolência do olhar, sei que fazia calor, que ela estava extenuada, que se aborrecia. Mas é no modo como estamos vestidos, nós, seus filhos, como infelizes, que reencontro um certo estado de espírito que às vezes dominava minha mãe e do qual, já naquele tempo, naquela idade que tínhamos na foto, sabíamos perceber os sinais precursores, aquela atitude, exatamente, que assumia, de repente, de não querer mais nos dar banho, nos vestir, nem mesmo nos alimentar. Esse grande desânimo de viver minha mãe tinha-os todos os dias.” [i]

Para Duras, sua mãe é a mulher de uma certa fotografia. Aqui se denota a importância da imagem nessa relação, já que ela assim a define. No momento em que escreve o texto toda a figura materna se materializa numa determinada imagem estática, se maternaliza. Não é uma imagem recente, e sim, uma de sua infância que a determina, em que a mãe lhe é reconhecível. Nos traços dela, Duras pode redefinir o sentimento que sua mãe transferia aos filhos. Pelo seu olhar nessa certa fotografia a filha sabe que a mãe estava cansada, “extenuada” e aborrecida. É também pelo seu olhar que ela sabe ainda que fazia calor naquele dia. Não há limites para a interpretação de uma imagem.
Porém, é no modo como seus filhos estão retratados que Duras sabe melhor como definir o “estado de espírito” da mãe. É na sua própria imagem e na dos irmãos que ela reencontra a imagem materna, e mais do que isso, seu cansaço extremo da vida, que a afasta dos filhos. Das vestes ela deduz, e ao mesmo tempo relembra, a infelicidade dos filhos por causa dessa mãe. Ela não descreve essas vestes de infelizes, mas se são elas que definem a infelicidade das crianças, é impossível não fazer suposições, criando e construindo essa imagem dessa foto. Revelando novas fotos. Como são essas roupas? São sujas, carcomidas? São rasgadas, faltando pedaços? Tem a aparência de que não são trocadas há dias? Que cores tem? Qual a cor do abandono?
Assim, fazendo essa análise, a autora vai exercitando a liberdade da consciência através da ausência. Em Sartre há exemplificação de como a imagem se constitui através dela. “a nadificação do mundo é a condição essencial e a estrutura primeira da aparição do imaginário”[ii]. O que “foi” se opõe ao que “olhamos ser” em certa fotografia, que demonstra toda a sua característica projetiva.
Blanchot tem duas concepções acerca da imagem: numa o real é velado e na outra o real é revelado. A primeira delas faz da imagem uma representação de um determinado objeto, como se fosse seu duplo. A imagem teria a função de nos preservar e proteger, recobrindo o real. “Ela limpa-o, torna-o conveniente, amável e puro, e permite-nos crer, no âmago de um sonho feliz que a arte autoriza com demasiada freqüência, que à margem do real e imediatamente atrás dele encontramos, como uma pura felicidade e soberba satisfação, a eternidade transparente do irreal.”[iii] Esta primeira concepção Duras escreve numa outra bela passagem sobre sua infância.

"De tempos em tempos minha mãe decreta: amanhã vamos ao fotógrafo. Queixa-se do preço, mas não dispensa as fotos de família. Essas fotografias, nós as olhamos, não nos olhamos, mas olhamos as fotografias, cada um separadamente, sem uma palavra de comentário, mas as olhamos, nos vemos. Vemos os outros membros da família um a um ou reunidos. Nós nos revemos quando éramos muito pequenos nas antigas fotos, e nos olhamos nas fotografias recentes. A separação aumentou entre nós. Depois de olhadas, as fotografias são guardadas no armário com a roupa de cama. Minha mãe manda-nos fotografar para poder nos ver, ver se crescemos normalmente. Examina cada um de nós demoradamente como as outras mães a outros filhos. Ela compara as fotografias, fala do crescimento de cada um de nós. Ninguém responde."[iv]

A mãe que não consegue olhar os filhos, os filhos que não se olham e que não respondem a essa mãe conseguem apaziguamento na fotografia porque ela os protege do real. Um real que a mãe não suporta. A imagem dos filhos é dela, ela olha como quer e consegue os mostrar ao mundo. O fato de guardar as fotos entre lençóis aumenta o sentido de intimidade e denota até mesmo uma certa sensualidade na relação com essas fotografias.
Outra passagem do livro reafirma a relação da mãe/filhos feita através das fotos, e somente através delas.


“Jamais tirava fotografia de lugares, de paisagens, só dos filhos, e quase sempre nos agrupava para que a fotografia ficasse mais barata. As poucas fotografias tiradas por amadores foram feitas por amigos de minha mãe, novos colegas recém-chegados à colônia que fotografavam a paisagem equatorial, coqueiros e cules, para enviar a suas famílias.” [v]

A segunda concepção da imagem que Blanchot faz é o “viver um evento em imagem”. “O que acontece apodera-se de nós, como nos empolgaria a imagem, ou seja, nos despoja, dele e de nós, mantém-nos de fora, faz desse exterior uma presença em que o “Eu”não “se” reconhece”.[vi] Entende-se a passagem como se a imagem aflorasse uma parte sua, colocasse para fora de você algo seu que fosse desconhecido. É o real representado que nos atrai, e fascina. Está aí revelado o mistério na atitude da mãe de Duras em insistir tanto em mostrar fotos dos filhos à família. A mãe era atraída para agir desta forma, fascinada com o que via naquelas imagens: uma família, algo que não existia na realidade, ela faz existir em imagem.

“Misteriosamente minha mãe mostra as fotografias dos filhos à sua família durante as férias. Não queremos entrar para essa família. Meus irmãos jamais a conheceram. Eu, a menor, a princípio ela me levava. E depois deixou de me levar porque minhas tias, por causa de minha conduta escandalosa, não queriam mais que suas filhas me vissem. Então só resta a minha mãe mostrar as fotografias, e então as mostra, logicamente, razoavelmente, mostra às primas irmãs os filhos que tem. Tem de fazê-lo, então o faz, suas primas são o que resta da família, e assim ela lhes mostra as fotografias da família. Será que se pode perceber algo sobre essa mulher por esse modo de agir? Por meio dessa sua disposição para ir sempre até o fim de tudo, sem jamais imaginar que poderia abandonar, pôr de lado as primas, a dor, as tarefas penosas? Acho que sim. É nessa coragem especial, absurda, que encontro a graça profunda.”[vii]

Interessante perceber que a fascinação diante das fotografias tem para Roland Barthes algo de “turvo”. Não é a nostalgia, é esse “turvo” que o encanta. Suscita uma espécie de “sonho obtuso” que divide seu corpo em várias unidades: dentes, cabelos, nariz e meias compridas que não os pertence e ao mesmo tempo não são de mais ninguém. Assim, ao ver sua própria imagem numa fotografia ocorre que, o que o prende é exatamente aquilo que ele não pode dizer nada. Em “Roland Barthes por Roland Barthes” quando o autor começa o livro com várias imagens ele diz não se reconhecer nas fotografias. As chama de indiscretas (pois é o corpo de baixo que nela se dá a ler) e muito discreta (“pois não é de mim que ela fala”). A conclusão de Barthes é que estamos todos condenados ao imaginário, já que somos os únicos que nunca podemos nos ver.

Onde está seu corpo de verdade? Você é o único que só pode se ver em imagem, você nunca vê seus olhos, a não ser abobalhados pelo olhar que pousam sobre o espelho ou sobre a objetiva (...): mesmo e sobretudo quanto a seu corpo, você está condenado ao imaginário” [viii]




[i] DURAS,M. (1984/85) O Amante – Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira. p.18 e 19
[ii] SARTRE (1940 p.359).
[iii] BLANCHOT, Maurice. O Espaço Literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. p. 256
[iv] DURAS, M. (1984/85) O Amante – Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira p.113
[v] Idem - p.104
[vi] BLANCHOT, Maurice. O Espaço Literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. p.144
[vii] DURAS, M. (1984/85) O Amante – Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira p.104/105
[viii] BARTHES,R. 1975 – São Paulo: Cultrix – p.42

quarta-feira, junho 27, 2007

A FOTOGRAFIA ESCRITA REVELADA EM MARGUERITE DURAS

Trabalho final do Pós-Lit da Disciplina "A Literatura e a Vida"da Professora Lúcia Castello Branco.: Faculdade de Letras.: UFMG.: Belo Horizonte

« La histoire de ma vie n’existe pas. Ça n’existe pas. Il n’y a jamais de centre. Pas de chemin, pas de ligne »
(DURAS, 1993:14).



A FOTO QUE NÃO EXISTIU - parte 1

Ao ler os livros de Marguerite Duras, depois do arrebatamento inicial que sua escrita provoca, é possível perceber como a autora usa a fotografia como um objeto de revelação. Mais do que uma escrita cinematográfica, mais do que as imagens que seu texto fazem imaginar, ela escreve por diversas vezes em vários de seus livros usando deste objeto para fazer uma escrita “atravessada pelo sujeito”.
Esta vida registrada em cada fotografia descrita neste trabalho é mais do que as suas memórias reconstruídas, ou até mesmo fantasiadas. Está nas fotografias uma vida própria contida, quase apagada, que ela nos revela com sua escrita. Re-vela no mesmo movimento no qual uma foto é quimicamente revelada. Algo que está fechado ou apagado e nem ao menos parece existir dentro de uma folha em branco, aos poucos se transforma, aparece, para em seguida se fechar, pois o que re-vela, vela novamente.
Para entender este movimento de velar e revelar nessa vida contida nas fotos que Duras (d)escreve, uso alguns conceitos de Barthes, Deleuze, Sartre, Blanchot e Silvina Rodrigues Lopes. Escolho, então, um de seus livros mais aclamados, “O Amante”, para fazer essa análise.
É um bom começo se lermos uma das passagens em que Duras fala da fotografia sem que ela tenha existido. E por essa razão, talvez, ela exista com força maior.

“Durante essa viagem, a imagem poderia definir-se, destacar-se do conjunto. Ela poderia ter existido, uma fotografia poderia ter sido tirada, como outra, em outro lugar, em outras circunstâncias. Mas não o foi. O motivo era muito insignificante para isso. Quem teria essa idéia? A fotografia só seria tirada se fosse possível prever a importância desse acontecimento em minha vida, aquela travessia do rio. Ora, no momento em que aconteceu, mesmo sua existência era completamente ignorada. Só Deus sabia. Por isso essa imagem, e nem podia ser de outro modo, não existe. Foi omitida. Foi esquecida. Não foi destacada, não foi registrada. A esse fato de não ter existido ela deve sua virtude, a de representar um absoluto, de ser seu próprio autor” [i]

Duras escreve sobre passagens insignificantes da vida que depois se tornam decisivas em nossa trajetória. Em nossa “travessia do rio”. A foto poderia ser tirada para que pudesse ser vista no futuro como uma reafirmação do passado, como uma comprovação de que tudo tinha realmente ‘se passado’ daquela forma. A fotografia, de certa forma, traria o passado novamente como presente, o lugar distante para aquele em que nos encontramos agora. “A fotografia nunca é vivida como uma ilusão, (...) e a sua realidade é a do ter-estado-lá, pois, há em toda fotografia a evidência sempre assombrosa do: aquilo passou-se assim: nós possuímos então, precioso milagre, uma realidade da qual estamos ao abrigo”.[ii] Entretanto, a fotografia não foi tirada, e esse abrigo a autora/personagem não teve e ao escrever sobre a virtude deste fato ela fotografa a cena passada, imprimindo essa imagem na memória.
Pensando sobre a passagem do tempo vista por uma fotografia, surge um de seus papéis mais corriqueiros. Quando o tempo passa, até mesmo os eventos mais marcantes e importantes são nublados na memória, a lembrança fica entre a fantasia do que se quer que tenha acontecido e aquilo que realmente ocorreu, se é que ocorreu, pois essa dúvida confunde sonho e realidade.Talvez ela precisasse voltar a essa foto sempre para reafirmar essa verdade, mas como não pode, ela existe por si só. A imagem é como é, como ela quer pensar que é, a cada vez que voltar a se lembrar dela. A foto da travessia de Duras só toma existência depois. Uma verdade é criada com o tempo e depois de outras experiências.
[i] DURAS, M. (1984/1985) O Amante – Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira. p.14
[ii] BARTHES, R. 1984 - p.36.