sexta-feira, março 30, 2007

APARECIMENTO


Ela me disse:

__ Foi a música que te salvou.

Eu falei que sentia isso mas que eu não sabia explicar o porquê.

__ Assim as palavras saem de dentro de você.

Respondi que já estava sentindo um bolo no estômago há tempos, e que nenhum remédio era capaz de me curar.

__ Sente dores na barriga? Perguntou.

Eu disse que as dores se espalharam pelo o corpo inteiro, pouco a pouco. Agora não mais...

__Você resolveu colocar um ritmo seu nas palavras que moram aí dentro.

Era isso, já não bastava expulsar as palavras pelos dedos das mãos. Era preciso usar a boca-língua-laringe- cordas-pulmão-voz.

__ Você escrevia, mas para isso precisava se calar. Mas a voz continuava lá. Se não cantasse não conseguiria escrever, então.

Não me sentia capaz de usar minha voz. Enquanto não fiz isso, as palavras se acumularam em mim. Agora só as liberto se uso seu ritmo próprio.

__ Tudo é vaidade e busca do Vento, percebe?

Sim. Palavras saídas da boca procuram o som do vento. Meu dentro as sopra para a loucura da vida quando canto. E se canto, enfim, sei o que escrever.

__ Cante, escreva e se possível dance. Toda a vida.

Perguntei então: É tudo?

__ É tudo o que eu tenho a dizer.

Me desprendi de sua presença. Assim, começo do meu nada para chegar no tudo dela.


Inspirado no livro "É Tudo" de Marguerite Duras

domingo, março 25, 2007

A VEZ DOS OLHARES



_____________Dois meninos pulam dentro da fonte que joga água para os ares, eles nadam. É o calor. Os pássaros fazem algazarra lá em cima dos coqueiros e de repente seus sons se sobrepõem a todo o resto. Quase me desequilibro tentando acompanhar essa festa no céu, volto o pescoço então, e continuo a andar.
______________Um casal está sentado conversando. Pelo olhar dela suponho que estão começando um enlace amoroso. Olhos vibrantes a mover-se de um lado para o outro, que mergulham na alma daquele que está a sua frente. Tento ouvir o que ele diz a ela de tão interessante, mas quando vejo já estou longe. Acho que nem ela ia saber contar quais seriam aquelas palavras.
____________Um cão espreguiça no sol, outro brinca com uma bola e um terceiro passeia dentro de um carrinho de bebê. É ele e não a criança que é cuidado por uma babá. Vejo à minha frente uma mulher bonita, perfumada, com os cabelos molhados de quem acaba de sair do banho. Ela leva sua cadelinha para passear. As duas têm o mesmo ritmo ao andar, o mesmo rebolado musical. Quase trombo nas duas quando a cadelinha resolve parar para sentir o cheiro das flores. A dona, ou melhor a mulher, espera. Nesse momento quem manda é a cadela.
_____________O homem todo de negro deita nas raízes de uma grande árvore para ler. De repente me dou conta de que quase todos estão lendo sentados em bancos, mas só ele se acomoda deitado no caule dela. Imagino que ele é o escorrer da árvore; é sua continuação. E ela, a árvore, aproveita para um carinho enquanto lê o que tem naquelas páginas. Por um segundo invejo aquele lugar de conforto do homem, e no seguinte, invejo a posição da árvore lá no alto. Mas, tenho pernas e vou.
______________ Dois jovens se beijam apaixonadamente. Continuam a se beijar... E todos os olhos se voltam para aquela cena. A água continua a cair do bebedouro, as formigas a descobrirem os caminhos na terra e a grama a exalar seu perfume tão próprio. Inspiro, bem fundo. Um homem caminha em direção contrária a minha, e ele sorri. Não é qualquer sorriso, é daqueles insistentes. É, ele está feliz, acha graça em alguma coisa. O que será? Cruza novamente meu caminho, e ainda ri!
________________Corro.

quinta-feira, março 15, 2007

ANTES DE VIVER O DIA

O armário de Vicente não era um armário comum. Era feito inteiro de gavetas pequenas.Várias gavetas etiquetadas e enfileiradas da base ao topo. Ele mesmo, com sua habilidade herdada do pai carpinteiro, o construiu assim que mudou para aquela casa enorme. Era um armário monumental, que ocupava, inteiras, as três paredes do melhor quarto daquilo que ele chamava de lar.
Vicente era um homem como outro qualquer antes de entrar naquele quarto todos os dias antes de sair. Tomava banho de manhã, se barbeava de três em três dias, usava a mesma marca de desodorante desde sempre, penteava cuidadosamente os cabelos e vestia o terno cinza que estava esticado em cima da cama. Assim que borrifava a colônia barata no pescoço, estava pronto.
Entrava silenciosamente no quarto das gavetas, abria todas as portas e procurava pela etiqueta certa. Segunda-feira era dia de ir para o trabalho, então abriu a gaveta chamada “concordato”. Toda terça, era feira e faxina. Não precisava do terno, mas tinha que abrir a gaveta “disposição”. Então, na quarta-feira ele se encontrava com Fátima, que não sabia do seu desejo por suas pernas e colo farto. Usou aquela gaveta “amigável” antes de vê-la. Talvez na semana seguinte tivesse coragem de abrir a “conquistador”.
Na quinta-feira encontrava com os amigos num bar. Essa era fácil. Sempre a mesma gaveta toda semana: “acolhido”. Quando chegava a sexta as escolhas variavam entre “oprimido”, “desiludido” ou “abatido”. Mas essa semana resolveu tirar a poeira da “esperança” e finalmente abri-la.
No sábado foi visitar a mãe. Nesses dias ele se delongava mais em frente às etiquetas. Nunca sabia qual a certa, a melhor, a mais adequada. O que sua mãe ia querer ver nele hoje? Por mais que variasse, nunca acertava. Optou por “realizado” e saiu correndo antes que se atrasasse de novo. Disso ela não iria gostar, definitivamente.
Então o domingo havia chegado. Podia ficar em casa sem depender delas, as milhares de máscaras inquilinas de suas gavetas etiquetadas. Máscaras essas que o pai tinha confeccionado, antes que Vicente se mudasse para viver a vida só.

quinta-feira, março 08, 2007

O SOL E A LUA


Clarisse era clara como o dia. Noêmia era negra como a noite. Nasceram no mesmo dia do mesmo ano na mesma família. Tudo dividiam e tudo tinham e nada possuíam.
Os astros no céu diferenciavam Clarisse e Noêmia. Talvez por isso eram tão diferentes, essas meninas. Além da cor da pele, dos cabelos e do formato do corpo, o coração e os quereres. Mesmo que todos esperassem o mesmo de cada uma delas, eram total e completa dissimilitude.
Uma era a raiz, a outra o vôo. Uma era a conquista, a outra a espera. Uma multidão, a outra solidão. Amigos, Amor. Família, Liberação. Roupas, Livros. Viagem, Trabalho.
Eram tão opostas essas meninas que elas, um dia, concordaram que as vidas unidas não poderiam ser nunca duas inteiras. Foi Noêmia... Juntou suas coisas, que não eram de Clarisse, e se foi sozinha, pela metade.
Cada uma passou a viver sem o naco daquilo que não eram, sem os objetos de que não gostavam e a vida que não escolheram.
Não muito tempo se passou para que Clarisse murchasse, sentada na beira de sua cama, paralisada. Só se moveu quando resolveu fazer sua mala e partir.
Encontrou Noêmia sob o céu estrelado de uma noite fria. Ela já tinha tudo o que era seu novamente empacotado a esperar por Clarisse. Quando os olhos claros viram os escuros perceberam que era impossível viver longe daquilo que não eram.

quinta-feira, março 01, 2007

ESTAÇÃO TEMPO *


Há muito tempo, impossível de contar, Sebastião guardava aquela carta amarelada no bolso da única calça de passeio que tinha. Depois de tantos anos, ainda se arrependia de não a ter respondido. Mais ainda, se arrependia de não ter ido ao encontro que Rosa marcara naquelas tortas linhas.
Por não ter ido naquela sexta-feira, na hora marcada por ela, Sebastião passou toda sua vida indo e voltando sem encontrá-la. Ele chegava pontualmente no horário marcado, todos os dias da semana, menos um. Sentava no banco da estação de trem e ficava procurando por ela, a chamando em pensamentos e imaginando a vida que poderiam ter tido juntos, se.
Todas as vezes que o vento batia em seu rosto, ele levantava os olhos para verificar, sem muita esperança, se era Rosa quem finalmente saltava do trem para dentro da sua vida. Ela não vinha, não vinha, não vinha. E o trem voava pela imobilidade do seu corpo cansado. Ele baixava os olhos e punha-se a reler a carta que não mudou sua vida.
Sebastião ficava esperando até que o lugar se aquietasse e ele tivesse a certeza de que era impossível alguém sair daquele trem naquele dia. Voltava para sua casa vazia, esquentava o jantar dormido de ontem e fazia o café de amanhã.
Foi em uma dessas manhãs cinzentas. Ele fez tudo igual, na mesmice possível que conseguia. Viu as mesmas pessoas indo aos mesmos lugares, no mesmo trem que passava sempre na mesma direção, e que ele há anos deixava partir.
Numa das infinitas vezes em que a porta se abriu naquele dia, ele então, avistou sua Rosa. Ela estava de mãos dadas com uma senhora de cabelos muito brancos, rosto marcado pelo tempo e queimado do sol, vestida de chitão. Desceram do trem. Só quando reconheceu seu antigo anel em forma de promessa nos dedos daquela velhinha, entendeu. Olhou para suas próprias mãos enrugadas, fechou a carta amarelada e voltou para casa.



* Este conto faz parte da Exposição de Fotos e Textos de Fernando Grilo e autores convidados, em cartaz no Café de Deus em Belo Hte - MG até o dia 27 de março.